O dia da libertação e os descontentes com a globalização

O dia da libertação e os descontentes com a globalização

A semana foi desafiadora para a economia global, e os mercados refletiram esse cenário, como se fossem a voz dos temores quanto às possíveis consequências para a economia real.

Vale lembrar que o preço de uma ação corresponde aos seus fluxos de caixa futuros trazidos a valor presente, descontados por uma taxa de juros e pela taxa de crescimento da companhia. Assim, se determinada política afeta negativamente a economia real, também impacta as receitas das empresas. Como resultado, os fluxos de caixa futuros passam a ser projetados em valores menores, pressionando para baixo os preços dos ativos. Foi, em essência, o que ocorreu com os mercados norte-americanos após o anúncio do novo pacote tarifário de Trump.

A medida, que é recíproca apenas no nome, esteve mais relacionada ao déficit comercial dos EUA com seus parceiros do que, de fato, a uma lógica de reciprocidade. Países que já aplicam tarifas elevadas sobre produtos americanos foram relativamente menos afetados, caso do Brasil, que ficou com uma alíquota mínima. Já a China, por exemplo, foi atingida com uma tarifa de 34%, o Vietnã com 46% e Taiwan com 32%. Na formulação das alíquotas, também foi considerado o impacto do déficit comercial sobre a inflação, como pode ser observado a seguir:



Um exemplo que pode ser utilizado, com os parâmetros   e  já calculados em 4 e 0,25 respectivamente é o de China.

As importações dos EUA oriundas da China são de US$ 438 bilhões e as exportações em direção à China fica no valor de US$ 143 bilhões. Assim, a “taxa de reciprocidade” fica em:


Resposta da China

Além da própria tarifa que foi aplicada pelos Estados Unidos, existe o risco de retaliação do outro lado e a resposta não tardou, com a China retaliando os EUA na mesma proporção, 34%. Isso, certamente, é mais um golpe que leva as expectativas de recessão para baixo, pois gera dificuldade para que produtos americanos entrem na China, um mercado consumidor importante. Assim, além de haver desestímulo por parte da produção uma vez que muitos produtos necessários para a criação de bens e serviços serem chineses, o que pode encarecer o custo de produção, por outro lado, o fabricante também poderá encontrar dificuldade para fornecer bens para um grande mercado consumidor como a China. Adicionalmente, Pequim também adicionou 11 empresas americanas à sua “lista de entidades não confiáveis”, incluindo fabricantes de drones, e colocou controles de exportação em 16 empresas americanas para proibir a exportação de itens chineses de dupla utilização.


 Impacto na cadeia produtiva e resposta dos mercados

Além do exemplo das peças do setor automobilístico que viajam para o Canadá e México (países que não sofreram retaliação) antes de retornarem aos EUA para a finalização da produção, os países asiáticos também desempenham um papel fundamental na cadeia global de semicondutores. Muitos chips fabricados nos Estados Unidos são enviados para Taiwan, China ou países do Sudeste Asiático para a montagem final, antes de serem reexportados aos clientes finais. Com isso, todos os setores que dependem de semicondutores podem sofrer algum tipo de pressão sobre as margens.

O mercado antecipou esse movimento, refletido nas quedas acentuadas das ações: o setor de semicondutores recuou 10%, a Apple caiu 9%, a Dell 19% e a Nvidia 7,8%.

Empresas do setor de luxo, como Michael Kors e Ralph Lauren, também sinalizaram possíveis impactos, com quedas de 24% e 16%, respectivamente. Essas companhias utilizam outsourcing de produção em países da Ásia Meridional, como Vietnã e China. O consumo de bens de luxo não foi o único a sofrer: produtos da Nike, que também tem produção no Vietnã, registraram forte desvalorização (-14,44%).

O impacto sobre as margens dos produtores não deve se restringir às empresas. Parte desses custos deverá ser repassada aos consumidores, o que gera receios inflacionários, ao menos no curto prazo. E quanto à recessão? Ela pode ser intensificada pelo aumento da incerteza e pela redução do fluxo de negócios, tanto nos Estados Unidos quanto globalmente.

Esses fatores estão alinhados com as projeções mais recentes do Federal Reserve, que reconheceu a possibilidade de elevação da inflação (PCE), queda no desemprego e, ao mesmo tempo, uma retração da atividade econômica mais acentuada que o avanço dos preços.

No mercado de Treasuries, o rendimento do título de 10 anos opera abaixo de 4%, menor patamar desde outubro de 2024, período eleitoral nos EUA.


Outra evidência no mercado de Treasuries é o spread entre yield dos títulos de 10 anos contra os de 2 anos que passa a subir, mostrando um temor de recessão no curto prazo.


Como chegamos até aqui? A origem do descontentamento

 As tarifas ocorreram agora, mas o qual é o plano de fundo? Trump já tinha feito tais promessas em sua campanha. Por que isso surpreende, sendo que já era prometido? Na verdade, para entender como isso tomou tal proporção, vale fazer a reflexão do “porquê os americanos escolheram esse caminho econômico”.

Em 2002 o economista americano e Prêmio Nobel de Economia, Joseph E. Stiglitz escreveu o livro “Globalization and Its Discontents” e em português foi publicado como “A Globalização e seus Malefícios”. A autor defendia que existiam malefícios que foram gerados pela globalização que, principalmente a classe, mas pobre dos países mais pobres enxergava, que nos EUA, os 90% mais pobres teve estagnação em seus rendimentos e que para trabalhadores homens os rendimentos reais foram inferiores do que era há 42 anos, comparáveis aos rendimentos dos anos 60. Adicionalmente, Branko Milanovic argumenta que os grandes perdedores do movimento da globalização foi a classe média e pobre dos países desenvolvidos.

Quem tomou tal argumento para si e a tornou slogan de campanha foi Donald Trump, com o objetivo de fazer a América Grande novamente. Voltar a produzir dentro do país, pois a ideia de que os chineses e outros países, principalmente da Ásia só fariam produtos de baixa complexidade e que o custo de produção diminuiria, dando um choque positivo na economia global e, de fato isso aconteceu, pois com os salários menores da Ásia e produção em massa, os produtos ficaram globalmente mais baratos.


Consequentemente, os juros passaram a cair globalmente, o que gerou forte ganho nos mercados financeiros globais.


Com tal movimento, a expansão da capacidade manufatureira na China é historicamente sem precedentes. A participação da China na produção manufatureira global bruta subiu de 5% para 35% entre 1995 e 2023, e atualmente seu volume de produção manufatureira é maior do que o dos nove maiores países manufatureiros seguintes somados

Com isso, a participação do setor agrícola no emprego total apresentou queda na maioria dos países desenvolvidos, estabilizando-se em um nível relativamente baixo à medida que a mão de obra migrou da agricultura para os serviços — em grande parte ignorando o setor manufatureiro, com destaque para a China e outras economias do sul da Ásia.


Isso acabou se refletindo nas últimas eleições americanas, mas não se trata de um fator recente — muito pelo contrário, é algo que foi sendo fomentado ao longo de anos, com a perda de empregos em setores que outrora representavam a base do 'American Dream'.


A conclusão é que medidas abruptas podem gerar efeitos negativos para a economia global. O atual arranjo econômico mundial foi construído ao longo de décadas e trouxe benefícios importantes, como juros e inflação mais baixos — o que facilitou o consumo e reduziu o custo do endividamento, por exemplo. Do lado dos investidores, houve crescimento nos lucros com margens menos pressionadas. Já as medidas adotadas atualmente podem impactar, ao menos no curto prazo, parte da população que recebeu a promessa de alívio por meio do controle da inflação e da desaceleração econômica.

Thainá Rambaldo

Analista econômico e Research no BlueBank | Mercado Financeiro | Investimentos | Comunicação

1 sem

💡 Ótimo insight

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